Disciplina: Língua Portuguesa 0 Curtidas
Depreende-se da leitura do primeiro parágrafo que a) a - UNIFESP 2016
Leia o excerto da crônica “Mineirinho” de Clarice Lispector (1925-1977), publicada na revista Senhor em 1962, para responder a questão.
É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora1. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho2 do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.
Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver.
(Clarice Lispector. Para não esquecer, 1999.)
1 facínora: diz-se de ou indivíduo que executa um crime com crueldade ou perversidade acentuada.
2 Mineirinho: apelido pelo qual era conhecido o criminoso carioca José Miranda Rosa. Acuado pela polícia, acabou crivado de balas e seu corpo foi encontrado à margem da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
Depreende-se da leitura do primeiro parágrafo que
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a cronista compartilha com sua cozinheira a dificuldade de conciliar sentimentos contrários em relação à morte de um criminoso.
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a cozinheira se sente incomodada com a pergunta da cronista porque acredita piamente na inocência de Mineirinho.
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a cronista se sente desconfortável com o fato de sua cozinheira mostrar-se dividida em relação à morte de um criminoso.
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a cronista provoca gratuitamente sua cozinheira com a intenção de impor seu ponto de vista sobre a morte de Mineirinho.
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a cronista se mostra perplexa diante da opinião de sua cozinheira de que um criminoso iria para o céu.
Solução
Alternativa Correta: A) a cronista compartilha com sua cozinheira a dificuldade de conciliar sentimentos contrários em relação à morte de um criminoso.
A alternativa A) é a correta porque a cronista, ao refletir sobre a morte de Mineirinho, expressa uma dificuldade em conciliar sentimentos contraditórios, que também se revela na fala de sua cozinheira. No excerto, a cronista reconhece que, apesar de Mineirinho ser um criminoso, há uma compaixão por sua morte, indicando que ela se sente dividida entre a repulsa pelo crime e a tristeza pela vida perdida. A frase “Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também” demonstra essa tensão interna, ressaltando a complexidade de seus sentimentos e a luta contra a desumanização do indivíduo.
Além disso, a cozinheira também expressa sua confusão e desconforto com a situação, refletindo um mal-estar ao tentar entender suas próprias emoções. Sua resposta fria à cronista indica que ela também está lidando com sentimentos conflitantes, como a raiva de ser questionada e a consciência do que Mineirinho representa. Essa troca entre elas evidencia que ambas compartilham a dificuldade de harmonizar essas sensações contraditórias em relação à morte do facínora.
Portanto, a cronista e sua cozinheira não apenas refletem sobre a figura de Mineirinho, mas também revelam a complexidade das emoções humanas diante da morte e do crime, o que torna a afirmação de que elas compartilham a dificuldade de conciliar sentimentos contrários em relação à morte de um criminoso a interpretação mais adequada do primeiro parágrafo. Essa análise destaca a profundidade da crônica e a habilidade de Lispector em explorar a ambiguidade das emoções humanas.
Institução: UNIFESP
Ano da Prova: 2016
Assuntos: Interpretação Textual
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